A vida não cabe na escala 6×1

A vida não cabe na escala 6×1

Publicado em 14 de novembro de 2024
Por Thiago Amparo

Um dia também já se achou estapafúrdio regular o trabalho doméstico.

O fim da escala 6×1 é uma “ideia estapafúrdia”, disse o presidente da associação de bares e restaurantes à Folha. Em 1905, em Nova York, os donos de padarias também espernearam quando o estado decidiu limitar a jornada de trabalho a (já exaustivas) 60 horas por semana, ou 10 horas por dia; à época, a Suprema Corte derrubou a lei trabalhista, no que é visto como uma das piores decisões de sua história.
Se quiser precificar a liberdade, o capital poderia colocar na ponta do lápis que trabalhadores mais felizes produzem mais e adoecem menos. A proposta poderia ainda quebrar ciclos de pobreza: afinal, numa jornada de 6×1, quando os trabalhadores vão se qualificar e estudar?

Pelo retrovisor, é possível que as ideias que um dia foram chamadas de estapafúrdias sejam vistas, no tempo futuro, como emancipatórias. Proibir a escala 6×1 parece tão estapafúrdio quanto um dia pareceu desvario proibir o trabalho infantil ou regular o trabalho doméstico no Brasil, país em que a escravidão foi a base da economia por três séculos.

Sequer a proposta do fim da escala 6×1 é absurda: reduzir a jornada já é tendência mundial, e mesmo a proposta de carga de 36 horas semanais manteria o Brasil na média dos países do G20.

A liberdade, no entanto, não deve ser concedida porque seria útil; a liberdade, como a vida, tem valor em si, não apenas utilitário. Lembro do Mujica: “A vida não é só trabalho. É preciso viver, é preciso amar, é preciso ser feliz, precisa-se de tempo para viver, amar e ser feliz. Ninguém compra cinco anos de vida no supermercado”. Se trabalhar fosse a razão de nossa existência, a etimologia da palavra não remontaria a um instrumento de tortura (trabalhar, do latim vulgar “tripaliare”, referente a “tripalium”, um meio torturante composto por três estacas).

Submeter trabalhadores a jornadas exaustivas com apenas um dia para todas as outras esferas da vida —ir à igreja, passar tempo com família e amigos, exercitar-se etc.— significa prendê-los a uma lógica na qual sejam apenas uma peça na engrenagem torturante da economia, descartáveis quando perdem a utilidade para seu senhor. A vida, no entanto, não cabe na escala 6×1.

Fonte: Folha de São Paulo
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